Um levantamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) mostra que o número de doutoras cresceu, no Brasil, 61% em seis anos. O número corresponde às mais diversas áreas da pesquisa científica, mensura o quanto as mulheres conseguiram firmar presença na construção da propriedade intelectual no Brasil.
Todavia, o índice está longe de ser um indicativo referente aos pontos mais altos do acesso à educação superior no País, mas é parte de uma problemática ainda maior. Segundo o relatório “Education at a Glance“, divulgado em 2019 pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil tem resultados pífios: apenas 21% dos brasileiros de 25 a 34 anos têm Ensino Superior completo; a média dos países membros da OCDE é de 44%.
Em áreas específicas, nem são necessários levantamentos para verificar que as mulheres ainda são minoria entre os discentes, a exemplo do setor de Tecnologia. É por isso que a CESAR School foi conversar com doutorandas de Engenharia de Software – cinco pesquisadoras que fazem parte desse “seleto” time de mulheres brasileiras que estão alcançando um dos picos da produção científica nacional.
Conheça Marcela, Mariana, Adriana, Cris e Joyce:
Espaços para meninas e mulheres
Assistente social por formação, Marcela Valença passou a encontrar muitas semelhanças entre o Serviço Social e a Engenharia de Software. “As duas resolvem problemas”, resume. Ao decidir concorrer a uma vaga no doutorado da CESAR School, a gestora do Eixo de Pessoas do Porto Digital assumiu uma liderança que a aproximou do seu próprio mercado, mas sem perder a visão ampla, social, de que teria pela frente mais ferramentas para atração de pessoal e compreensão desse ecossistema que busca por mão de obra.
Orientanda do professor Cesar França, Marcela conta que antes mesmo do doutorado já buscava entender como melhorar a captação de capital humano; França já estava debruçado sobre o assunto e Marcela entrou como apoio no projeto. O tema virou seu objeto de estudo no doutorado da School.
Com 20 anos de experiência com o Serviço Social, passando por trabalhos de proteção à criança e ao adolescente, à mulher, ligados à habitação, Marcela já estava habituada a “pensar em um problema e desenhar uma solução”. “Eu me achei desse ‘outro lado’ também”, atesta.
E sobre sua condição de mulher, doutoranda e em posto de liderança – uma raridade no Brasil – Marcela diz ter consciência de que serve como referência. “A gente quebra paradigmas, mostra, inclusive para outras mulheres, que podemos atuar nas áreas de tecnologia, matemática, lógica, além de estudante e ter uma liderança nessa área. É muito importante ter uma referência e, como liderança, construir pontes e caminhos para que outras mulheres sentirem que é possível e irem além”.
Marcela cita o programa Minas, de equidade de gênero, que preza pelas vertentes de formação, fortalecimento e empreendedorismo para mulheres de várias idades. “Queremos que meninas e adolescentes aprendam que pode ser o que quiserem, que têm opção além das imposições sociais. Que elas consigam se colocar, trabalhar, empreender, se destacar em todos os ambiente e também no ambiente de tecnologia, que ainda é muito dominado por homens”.
Ocupando nossos espaços
Economista, mestre em Engenharia de Produção e pós-graduada em Ciência Política e Cultura de Moda; há dois anos, superintendente de Negócios e Inovação do Porto Digital. Casada, mãe de dois filhos, uma vida inteira dentro desse universo dito “masculino” sem que tenha sofrido preconceito de gênero. Mariana Pincovsky é uma exceção. “Eu nunca senti, em nenhum dos locais em que trabalhei, discriminação por ser mulher. Por sorte, sempre fui bem acolhida, mas sei que isso não é comum”, relata.
Além do cargo de liderança, Mariana é doutoranda em Engenharia de Software pela CESAR School, onde é orientada pelo professor Rodrigo Cunha. Uniu o que já faz no dia a dia do trabalho com a pesquisa e desenvolve estudo sobre credit score e behavioral economics.
Pedimos que Mariana reflita, brevemente, sobre sua trajetória. A provocação é tanto a proximidade com o dia Dia Internacional de Luta pelos Direitos das Mulheres (conversamos no dia seguinte, 9 de março) quanto pela baixa participação feminina na área de tecnologia (e em outras também tão “masculinas”).
“Tenho duas graduações, duas pós, mestrado e curso o doutorado, além de ser professora da UPE (Universidade de Pernambuco). É o que precisamos: oportunidades para ocupar nossos espaços. Eu tenho horror a comemorações pelo Dia da Mulher. Vamos comemorar quando não precisarmos mais disso”, finaliza.
“Autoafirmação de dentro pra fora”
“Esse ‘ambiente muito masculino’ acaba interferindo em quem somos. A gente se acostuma a não romantizar muita coisa, a não demonstrar fragilidades”, diz Adriana Falcão, economista, administradora e com larga experiência no setor financeiro. A cabeça naturalmente “matemática” não impediu que Adriana percebesse que tantas “adequações” tornavam a rotina de trabalho ainda mais cansativa.
“É muito cansativo, você fica exaurida de algumas coisas. Minha experiência maior é em economia e sempre acabei sendo muito subestimada Na docência, eu era a única mulher, precisava e preciso provar quem sou todos os dias”, resume Adriana. Enquanto foi gerente de uma instituição financeira, além de única mulher, ainda era a única nordestina. “Meu desafio começava pelo meu sotaque. Muitas vezes eu tinha que me esforçar em uma comunicação clara, direta, que prendesse a atenção do interlocutor para que minha forma de falar não se sobressaísse ao conteúdo”, relembra. Doutoranda pela CESAR School, onde é orientada por Ana Paula Furtado, Adriana é uma das três mulheres de uma turma majoritariamente masculina.
Nesses desafios diários, as consequências são muito claras para ela. “Acho que a gente se torna uma pessoa mais flexível, mas ‘se dobra’ tanto que às vezes ’empena”’, resume Adriana. No somatório, vêm os filhos – um deles, com Síndrome de Down. Adriana não diz ou sente que Filipe dá mais trabalho que Clara, mas sabe que é mais exigida – pelos outros – por causa dele.
“Quando ele nasceu, o que já era um ‘absurdo’ (uma mãe trabalhar) ficou ainda pior: uma mãe que deixa seu filho especial em casa para trabalhar, para viajar. Eu, que sou mãe deles, sei que educar não é fácil e o que Filipe me traz são demandas diferentes e um exercício de descobrir a força que tenho. Não entrei nesse modelo comum em que a mulher tem que lavar, passar, levar filho na escola; analiso meu contexto sem vitimismo. É quando me vejo, decido que não quero perder minha feminilidade mesmo estando nesse ambiente. minha autoafirmação é de dentro pra fora”.
Uma (apenas uma) inspiração feminina
Se aceitasse o que ouvia, Cristina não estaria onde está hoje. Foi subjugada desde antes do início da carreira porque ousou projetar-se em uma “área de homem”, mas gostava mesmo de computadores e tecnologia, deu de ombros às investidas negativas e seguiu em frente.
Formada em Ciência da Computação pela Universidade Federal do Amazonas e pós-graduada em Desenvolvimento de Jogos, Cristina Araújo é mestre em Engenharia de Software e doutoranda na mesma área pela CESAR School. Não tenta, em nenhum momento desta conversa, florear o preconceito e as dificuldades que enfrentou porque é a partir delas que foi e vem abrindo caminho para outras meninas nesse “mundo masculino”.
“Comecei em 2002 com Desenvolvimento de Software. A área de tecnologia é a única coisa que conheço na vida. No início da faculdade, eu já trabalhava nessa atividade com a formação que tive na escola técnica. Meu primeiro computador foi meu primeiro desejo e se tornou meu primeiro ganha-pão”, relembra Cris, que comprava livros de Java e programava sozinha em casa. “Isso já me fez conquistar meu primeiro emprego”.
Com a primeira experiência profissional veio também a decepção com colegas de trabalho. “Na minha cabeça, eu não precisava provar nada a ninguém, nunca havia passado por situações que pedissem isso até então. Eu tinha muita empolgação com o que fazia e meus colegas tentavam me podar. Não havia outras mulheres nos projetos que eu participava, e isso impactou muito na minha personalidade. Eles (os colegas) se mostravam empolgados nas reuniões e acabavam ficando com projetos”, narra Cris.
Entre as raríssimas influências femininas que teve, Cris relembra sua orientadora, Dra Tayana Conte, da UFAM. “Aquela professora foi minha inspiração para continuar na pesquisa e o que me levou para o mestrado e doutorado. Nunca tinha tido, antes, mulheres fortes por perto. Foi quando a conheci e aí isso me ajudou muito, esta representatividade”.
Anos passavam e veio a percepção de que eram eles, os homens, que precisavam aprender a conviver com uma mulher profissional. Mas Cris não parou de ouvir absurdos. “Para que estudar tanto se você não vai trabalhar?”, dizia uma tia. “Você é bastante bonita, porque não casa e resolve logo o seu problema”, ouviu de um professor. “Eu não lembro de momentos bons na minha carreira em relação a homens. Aí você pergunta se hoje, com 40 anos hoje, as coisas melhoraram? Veja, a gente se torna doutora e ainda lida com esse tipo de coisa, tendo a convencer de que somos boas”.
Mas não pense que os relatos de Cristina são de vitimismo, ela já foi muito além de seus pares e não pretende parar. Mas as coisas precisam ser ditas, e ditas como erradas, ignorantes e perversas. “Eu falo para colocar uma realidade mesmo. A gente parece que tem muito ainda para ensinar aos homens, eles não sabem nada sobre nós”.
“Fruto de muito trabalho”
Da graduação em Análise e Desenvolvimento de Sistema (ADS), em Caruaru, Joyce Teixeira pulou para o mestrado em Ciência da Computação no CIn-UFPE, para a docência e para o doutorado em Engenharia de Software na CESAR School. Recentemente, se tornou a nossa coordenadora da graduação de Ciência da Computação.
Uma trajetória vitoriosa, como ela sabiamente reconhece, que começou por “curiosidade” em uma sala de aula onde só havia duas mulheres. “Por eu ser mais nova, notei que realmente tinha aquele olhar diferenciado e que eu tinha sempre que estar provando que realmente sabia alguma coisa. Ouvi coisas como ‘você tem um jeito tão meigo, deveria ir pra área de saúde’ e ‘será que aguenta o peso de um CPU?’. Mas foi no começo, depois isso acabou”, narra.
Na UFPE, Joyce não sentia mais essa diferença, embora visse que o quantitativo feminino continuava pífio. Já no CESAR, pelo perfil da empresa, também conseguiu trabalhar sem “o peso” que aparece em outros lugares a uma mulher.
“Quando minha filha tinha 3 anos, entrei no processo de docente na CESAR School e peguei as turmas de programação para lecionar. Acredito que por eu estar em um ambiente diferenciado, foi muito tranquilo. Foram dois anos lecionando e agora eu assumi a coordenação. Semestre passado, entrei no doutorado e na minha turma tem duas mulheres”, relata.
Joyce não tem falsas modéstias, sabe onde chegou: onde poucas chegam, infelizmente. “Eu me sinto importante, sim. Desde a graduação, quando vinha para o Recife com meu pai, passava em frente ao CESAR e dizia: vou trabalhar aí. Hoje, sendo coordenadora de um curso, estar no doutorado, lecionar disciplinas na pós.. dei curso de Python para Fred Arruda (risos). Eu me sinto bem realizada, é fruto de muito trabalho”.
Essência feminina
“Eu não pensei que iria entrar na área de tecnologia. Pelo contrário. Meu pai é da área, eu o via virar noites fazendo programação, nunca quis aquilo pra mim. Mas parece que as coisas das quais fugimos nos atraem”, diz a desenhista industrial Gabriela Boeira, formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) quando o hoje curso de Design ainda tinha o nome antigo. Hoje, ela cursa o doutorado profissional em Engenharia de Software na CESAR School.
A vida profissional de Gabriela começou em quantitativos igualitários de gênero, como é característico nessa graduação. Mas há mais de uma década, ela passou a trabalhar no CESAR e adentrou esse universo dito “masculino” (vamos usar aspas para manter o tom ameno dos relatos de Gabriela) que pode intimidar mulheres ainda que inconscientemente. “Por experiências minhas, eu evitava roupas que não fossem calças para trabalhar. Eu nunca passei por preconceitos enquanto designer, mas passei como mulher. Hoje, vejo de outra forma”, conta Gabriela, que trabalha como lead designer no CESAR Labs, em Sorocaba, São Paulo.
“Tem a minha maturidade. O que eu vivenciava há 10 anos, com outra cabeça, é diferente. Hoje temos mais mulheres em cargos de liderança que se posicionam, mulheres mais novas que já são ‘militantes’, já sabem se impor e se portar. Mulheres que batem e brigam por seu próprio espaço”, diz.
Para Gabriela, essa “essência feminina” que foi se perdendo a fez passar a ter comportamentos mais agressivos, a bater de frente, ter picos de stress. “Era como fazer uma mímica do comportamento ‘masculino’. Depois do Burnout, aprendi que essa não é a melhor forma de agir”, diz, pedindo aspas ao termo que destaca um estereótipo, não uma condição unicamente do homem.
Nos últimos 10 anos, Gabriela teve dois episódios de Síndrome de Burnout (distúrbio que afeta quem passa por exaustão extrema relacionada ao trabalho e, no caso dela, de muita autocobrança) – e relembrar o problema é também refletir sobre comportamentos de gênero. Na situação, sua equipe de liderança, que agiu com empatia e acolhimento, fez muita diferença. “Minha atual equipe de líderes é assim e tem homens. Minha liderança direta é um homem com essas características e faz toda diferença. Eu me identifico com esse perfil e sei que ele é estratégico. Na minha trajetória, também tive gerentes mulheres que até hoje são referências, que me deram orientações anos atrás que, até hoje, são relevantes”.